#22 Édipo é misógino?
Há um "rebaixamento feminino" que esta atrelado ao "cuidado" como "ato rebaixado". Nossa cultura criou o que chama de instinto materno. E é capaz de matar para mantê-lo
LEVANTE MULHERES VIVAS
Estamos afogadas em meio a uma onda de crimes contra mulheres, uma violência em escalada e números oficiais que mostram os casos em ascensão. Feminicídio é o nome dos assassinatos de mulheres que têm a causa ancorada no fato da vítima ser, veja só, mulher. Lia Bock “desenhou” em seu Instagram como é a dinâmica das mulheres “matáveis”.
E Geni Nunez, a guarani, anticolonial e psicóloga, deu a letra nessa entrevista para a pesquisa Mulheres e Poder:
“A palavra mulher não existia em nossa cultura. O que existia era pessoa. E eles construíram essa palavra mulher a partir do matrimônio. Ou seja mulher, era a pessoa que tinha constituído matrimônio. Tanto que até hoje em muitos locais, quando a mulher se divorcia, ela é referenciada como ex-mulher de tal pessoa. É isso que é hegemonicamente posto do que é ser mulher. Alguém que pode deixar de ser sem o casamento”.
Ser mulher é lido como posse. E, por isso, quando deixa de ser posse, ela pode morrer.
Mas nós estamos nadando contracorrente - só para exercitar. E queremos ficar vivas. Vivinhas da silva.
O movimento “Levante Mulheres Vivas”, sem partido político e feito por mulheres inteiras, organizou um ato para clamar “chega de feminicídio”. Na maioria das cidades brasileiras será neste domingo, dia 7 de dezembro. Neste perfil você se informa onde ocorre perto de você. Seremos Todas por nós todas. Compareça.
Ok. A mensagem mais importante para você que chegou ao texto é o convite para mobilização que fiz acima. Mas para encorpar a “Dose Dupla” de hoje resolvi trazer para mesa algo a mais: a minha monografia, apresentada ontem no Instituto Sedes - onde cursei Conflito e Sintoma.
E trago o texto para esse rolê porque de alguma forma ele dialoga com tudo que temos conversado aqui: o papel central do cuidado, mal distribuído para dedéu, totalmente jogado no colo da mulher e fantasiado assim de “instinto materno”.
E nesta dinâmica também há o que Safatle chamou de “rebaixamento feminino” que, dentro do nosso caldo cultural, reforça o famigerado papel delas em algo desvalorizado, com uma certa humilhação.
Certamente. no texto, cometo atrocidades teóricas e de conceito, pois falo desse lugar perigoso e delirante: uma mãe, jornalista e apenas curiosa por psicanálise. Então, dose duplers, se você quiser encerrar sua leitura aqui, não te condeno, só peço uma coisa antes de partir.
Ajuda essa pessoa aqui e vota no tema que deseja ler na próxima edição, vai?
Olha só você. Permaneceu aqui, obrigada <3
Então agora deixo o texto na íntegra, que permitiu linguagem e pensamento leigos. Agradecendo aos colegas do Sedes e à professora Ana Patitucci pelo ano em que eu achei um lugar onde me senti em casa
Assim, eu comecei:
Mamãe, quando eu casar com o papai, o que vai acontecer com você?”
A frase disparada pela minha filha Olívia quando ela tinha aproximadamente três anos e meio de idade, em uma tarde de domingo, trouxe algo que não estava preparada para trombar de forma tão explícita, caricata e até cômica: sim, a estrutura do Complexo de Édipo morava em minha casa.
E da maneira como foi exposto pela minha criança trazia notícias de que, 108 anos após o registro da conferência de Sigmund Freud intitulada ‘O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais”, as minhas configurações familiares pareciam manter o mesmo desenho descrito para o “pai” e para “mãe”, tal qual foi aventado no texto de 1917 do fundador da psicanálise.
A constatação não foi isenta de desconforto - ainda mais quando relembro a resposta típica de rival que eu dei à menina: “Não filha, o papai é casado comigo, a sua mamãe”.
A inquietação se deu pelo fato de sentir ali, naquele diálogo, que meu núcleo familiar abrigava o que eu aventava - na época - ser o significado do pai edipiano em Freud - um símbolo de uma dinâmica patriarcal, eurocentrada, machista e neoliberal.
Com essa fantasia de conhecimento absoluto sobre o que se tratava o Édipo freudiano, um belo de um misógino, o questionamento que veio em mim foi: ora, como o clichê “amo o papai e rivalizo com a mamãe” conseguiu ser mantido em minha família, dado todos os avanços no campo do gênero e das organizações de parentalidade, os quais tenho o privilégio de fazer parte?
Esse questionamento denuncia, assim, duas confissões importantes - como já devem supor:
No momento em que o diálogo com minha filha ocorreu, eu não entendia nada nada de Freud, nunca tinha lido uma conferência, apesar de conseguir citá-lo nas mais variadas conversas de botequim. E, nelas, postular o complexo como misógino, machista. Justamente por isso, acredito, minimizei e conclui à época que a vivência com a minha pequena era uma reprodução fidedigna do que achava ter sido o objetivo do psicanalista ao se debruçar na tragédia grega de Sófocles, Édipo Rei (céus, que erro)
Já hoje, oito anos depois do ocorrido e disposta a escrever aqui sobre como enxergo o diálogo de domingo na cozinha da minha casa, permaneço sem compreender a totalidade do Complexo de Édipo proposto por Freud, convencida ser este um objetivo delirante. Pois mesmo após o contato com inúmeros textos em que Freud traz impactos sobre a estrutura edipiana em nossas vidas, sempre encontro mais algum caminho de interpretação e implicação não cogitado antes.
É curioso dizer que na obra de Freud não há um texto 100% dedicado ao Édipo, apesar das pesquisas mostrarem que já em 1897, em uma carta a Fliess, ele faz uma citação (que parece ser a primeira).
A verdade é que, mesmo com minhas tantas tentativas feitas em especial no último ano em que cursei Conflito e Sintoma no Sedes, o enrosco entre Édipo, Jocasta, Laio e todos os personagens de Tebas ainda é parte de uma espécie de enredo misterioso de compreensão de minha parte.
Diante da dupla confissão, fica óbvio também que não tenho capacidade de questionar ou reinvindicar uma psicanálise sem Édipo - ainda mais porque este caminho já foi muito bem percorrido por - dentre outros- exemplos: Rita Segato em Édipo Negro; o Anti-édipo, de Deleuze e Guattari e até Betty Friedan com a Mística Feminina (deixadas aqui, portanto, como uma sugestão de leitura).
Resta a esse texto propor, então, o que acredito ser capaz de mergulhar, partindo deste lugar que ocupo: uma jornalista, curiosa por psicanálise, mãe de três filhos, uma delas que verbalizou a vontade de casar com o pai e foi repreendida pela mãe.
E é assim que, lendo o Complexo de Édipo hoje, sou fisgada pelo papel que o “cuidado” desempenha nele, sendo - inclusive - ao que eu interpreto - a tarefa de cuidar bem mais central nas estruturas edípicas do que até mesmo as pessoas “em si” que desempenham o cuidado.
E ao identificar o “cuidado” como protagonista em Édipo, proponho como convite uma associação com o Mito da Caverna de Platão.
Nas próximas linhas, minha tentativa será mostrar porque o cuidado associado ao que chamo de “Hub Mãe (Mãe-Caverna)” é o que permanece “voltado para dentro, para a casa, para a família”. Já o “falo” é associado ao que nomeio de “Hub Pai (Pai-Mundo)”, aquele que “consegue sair para vivenciar o mundo externo”, fora, em direção à luz.
Um cuida, com contenção e culpa.
O outro mostra, com audácia e liberdade.
Nota: *Usei aqui o termo “farialimer” HUB para identificação de Mãe e Pai, já que sabemos que hoje são pontos não necessariamente vivenciados por figuras literais, mas como papeis que conectam, convergem e distribuem. Hubs, portanto
A figura de cuidado no centro
Para chegar ao papel do cuidado em Édipo, primeiro recorro à definição feita por J-D Nasio, psicanalista e psiquiatra radicado na França e autor do livro “Édipo, um complexo que nenhuma criança escapa”
Nasio transformou como conclusão de seu trabalho que o Édipo está em qualquer que seja a configuração familiar, trazendo pistas importantes de que a relação entre a criança cuidada e o cuidador é o que movimenta a engrenagem edipiana.
Logo na introdução, olha o que ele traz:
“O Édipo é uma lenda que envolve todas as crianças, vivam elas em uma família clássica, monoparental, recomposta ou, ainda, cresçam no seio de um casal homossexual, ou até mesmo sejam crianças abandonadas, órfãs e adotadas pela sociedade. Nenhuma criança escapa ao Édipo! Por quê? Porque nenhuma criança de quatro anos, menina ou menino, escapa à torrente das pulsões eróticas que lhe afluem e porque nenhum adulto de seu círculo imediato pode evitar ser o alvo de suas pulsões ou tentar bloqueá-las”.
E por que então insistimos na presença literal de uma “mãe” ou um “pai” para falar do complexo edipiano na formação da sexualidade, desejo, libido e interdição?
Ao que parece, insistimos nesses personagens, como disse o autor de “Freud no Kibutz”, Guido Liebermann - durante seminário que ministrou no Instituto Sedes - porque “há, mesmo no campo progressista, uma espécie de fetichização do que é a família (formada por mãe e pai e criança)”.
“Porém”, segue Liebermann, “o que é reivindicado como papel de mãe e pai pode ser desempenhado por qualquer pessoa inclusive por um grupo, (como ocorreu nos Kibutz estudado por ele e também com um padre que assumiu o “papel de mãe”, conforme relatado no mesmo evento).
Isso posto, convoco - então - para defender a centralidade do cuidado na estrutura do complexo de Édipo, o que o psicanalista Lucas Nápoli pontua no manifesto “Como pensar no Édipo em famílias não tradicionais”.
Segundo ele, em vez de fixar e buscar quem são “mãe e pai” devemos observar quem são e como se relacionam com a criança o “primeiro e segundo outro” que ela tem acesso. E esses “outros” são nada mais nada menos do que as figuras primárias e secundárias de cuidado.
Napoli define assim:
“Nos textos de Freud, de fato, está escrito “mãe e pai” para falar sobre o Complexo de Édipo. Mas para que sua obra dê conta de contemplar as múltiplas estruturas familiares existentes, é preciso olhar para a estrutura edípica freudiana como um mito estrutural e, portanto, as figuras dos genitores descritos são como símbolos”.
“A mãe é, na verdade, o primeiro “outro” - ou seja - a pessoa ou instituição que toma a criança como objeto de gozo e objeto de cuidado - para que o bebê tenha suas necessidades atendidas e a sobrevivência garantida, por meio do investimento libidinal que recebe por essa figura inaugural”, explica. “E a figura do pai, que pode ser o genitor, simboliza na narrativa freudiana o segundo outro na vida da criança. Pois - se o primeiro outro - garante a sobrevivência do bebê, ele não é capaz de permitir que a criança se torne sujeito, sócia da sociedade humana. Então, para sair do estado de natureza e tornar-se um estado social, ela precisa de uma ponte. Essa ponte na história de Freud, é chamada de pai.”
Assim sendo, não há como defender que esse trio (mãe [mulher], pai [homem], filho [criança]) seja a única triangulação edipiana, mesmo nos dias atuais.
Ainda assim, é essa a “historinha” que permanece absoluta e normativa, sendo a mais contada, seja pelas novelas, pelos contos-de-fada, pela literatura, dando corpo para o caldo cultural ao qual Édipo está (e permanece) mergulhado.
Essa estrutura oferece à mulher/genitora a obrigação de ser a primeira figura de cuidado e exercer tal função quase sempre sozinha. Já a possibilidade de mostrar o mundo fica a cargo do homem, como uma “chance” e não uma “obrigatoriedade/responsabilidade” e ainda com outros agentes envolvidos.
Mais do que isso…
Quase como uma ironia, temos esse papel de “primeiro outro” definido pela cultura como “instinto materno”.
Digo ser irônico recorrer ao conceito “Instinto da mãe” porque isso se repete à exaustão para nomear como se dá um dos papeis de cuidado do Complexo de Édipo freudiano. Justo em referência à obra do homem que tanto defendeu “sexualidade” e “adoecimento” como frutos das vivências, inconsciente e dispositivos culturais, sendo eles mais implicantes do que a própria biologia.
Seguindo, em minha avaliação, essa dinâmica do cuidado, que eu chamo de coreografia da caverna, influencia todo o desenvolvimento da sexualidade proposta por Freud, desde as três fases pré-edípicas na infância, como na formação do Complexo de Édipo, a própria castração - e saída do Complexo em si - ficando a sugestão de leitura do texto de 1925 - “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”.
Pois, como vou defender a seguir, são essas interferências culturais no desempenho dos papeis de cuidado que fazem a mãe ser associada à permanência e à retração - e ao pai a função de saída, de expansão.
Ps 1: Antes de continuar, desejo fazer uma provocação que já ouvi de alguns psicanalistas. Recorro à polêmica frase “Anatomia é destino” atribuída a Freud e gosto de lê-la como uma “denúncia” e não como uma “profecia”. Pois quando Freud escolhe a palavra “destino” reforça que há um caminho percorrido até as anatomias serem “vistas” como são. Veja, ele diz “destino” e não “origem”
O desenvolvimento da sexualidade infantil
Nesta dança conduzida pelo cuidado na coreografia da caverna, há um inevitável rebaixamento da feminilidade como denuncia (gosto desse verbo) Freud ao dizer que ela será recusada.
Para que esse ponto seja melhor compreendido, sugiro que façamos uma rápida visita aos caminhos de desenvolvimento da sexualidade infantil.
De forma audaciosa (e certamente irresponsável), vou descrever o meu entendimento do texto de 1917 usando apenas algumas linhas.
Vamos lá, partimos do ponto que a sexualidade infantil originalmente é perversa-polimorfa. Ou seja, perverte o objetivo de procriar e tem o prazer distribuído em diversas zonas erógenas, sem estar concentrada nos primados genitais.
Dito isso, primeiro vem então a Fase Oral, que pode ser chamada de “Fase do Sim”. Trata-se quando a criança “aceita com objeto meio de satisfação” tudo que chega próximo à sua boca, sendo capaz tanto de fazer a sucção do peito materno, como sugar um pedaço de pano.
Depois, temos a “Fase Anal”, tida como a “Fase do Não”, implicada pelo sadismo. Nela, entra em cena a recusa e a capacidade de reter o que pode satisfazer, ainda que isso cause um desprazer ou sofrimento - os famosos mecanismos de controle.
Para então chegar à Fase Fálica, que tem como característica principal a descoberta da masturbação (clitóris e pênis) que segue rumo à descoberta da diferenciação sexual.
A psicanalista e doutora Renata Writhmann, quando se debruça no Édipo em sua série Travessia Psicanalítica disponível no Youtube, traz o argumento de que é a menina que primeiro se dá conta da diferença anatômica: “Porque quem está em desvantagem é geralmente quem percebe primeiro”.
É sobre essa percepção que Freud vai recorrer ao conceito de “inveja do pênis”, sendo, vale dizer, o pênis um símbolo de algo que se tem “vantagem em ter”.
A menina então, diz Renata, é convocada a fazer uma suplência dessa vantagem, tendo em alguma medida quatro consequências possíveis e quase sempre surgem de forma simultânea:
Ferida no narcisismo e um sentimento de inferioridade
Uma inveja dos meninos que têm um falo
Uma cobrança da mãe - como se ela ocupasse o posto de culpada da castração, responsável pelo “não ter”.
Um recuo e um abandono da masturbação clitoriana, como se existisse um entendimento de que estando em desvantagem não pudessem usufruir do prazer que a masturbação trazia
A palavra que é forte e norteadora da menina nesse contexto é o abandono, é o “abrir mão” - nota minha - fato quase como fundante da dificuldade mantida em mulheres de se olharem como “aptas” e dignas do prazer.
A menina abandona a masturbação, se retrai e entende que a sua oportunidade de voltar a ter o prazer é se fizer uma aliança com quem pode expandir suas chances, ainda que ela tenha que se retrair ou abrir mão de algo: o pai.
Já os meninos, nessa fase, ficam mais estimulados a mostrar o falo, tendo um comportamento muito mais interessado em mostrar a presença do que eles TÊM em detrimento a se importar com a ausência que observam no outro, negando qualquer espaço para questionar e refletir sobre a incompletude e como saná-la (Referência Organização Genital Infantil, 1925).
Para entender como essa etapa chega no “rebaixamento” da feminilidade e ao “mito da mãe-caverna e do pai mundo”, acredito que a forma mais rápida de fazermos isso é se pegar o bonde de Vladimir Safatle, presente no livro “Freud, Fetichismo Colonizador do Outro”.
Olha o que está na pagina 48:
É possível que a diferença sexual seja a primeira experiência de alteridade profunda com a qual a criança se confronta no interior da vida social. …. Notemos como, já no momento da descoberta (da diferença sexual), a feminilidade deve ser vista pela criança como fonte de aversão. É inegável que a feminilidade aparecerá para a criança sobre um selo de um certo rebaixamento (aquele que perde é aquele que não pode)… Tanto o menino quanto a menina vão vivenciar a feminilidade de maneira aversiva que Freud chamará de recusa da feminilidade.
Mais a frente, na página 52, Safatle apresenta uma chance de um outro caminho especialmente se reconhecido pelos homens e pelas mulheres - cumprindo - inclusive - o que se postula como papel da psicanálise
De fato, a teoria freudiana nos permite desenvolver outra forma de abordagem desse problema. Pois talvez a dificuldade de um sujeito aceitar a diferença sexual em seu potencial de alteridade e não através desse rebaixamento da feminilidade e a um sinônimo de passividade (afinal, a fantasia masculina por excelência) venha, na verdade, da submissão da sexualidade polimórfica e autoerótica ao primado fálico nunca ser realizada de maneira completa… Ou seja, o primado fálico sempre é frágil e por isso deve ser continuamente defendido.
Uma outra caverna
Diante do exposto até aqui, saliento que é possível olhar essa dinâmica de uma forma simplificada, porém reforçada pela cultura, de que “à mulher - castrada e rebaixada - cabe de forma obrigatória e quase sempre solitária ser a primeira figura de cuidado do bebê. Tendo ainda que investir todo seu desejo libidinal à criança com a ameaça (e portanto a culpa) de que essa é a única chance de sobrevivência do filho”.
Já ao homem, que sempre é enaltecido pelo que tem (e o poder de ter), além de pouco incentivado a olhar para a falta (que pode ser dele) e para a completude que ele deveria buscar, também é designado a função de mostrar o mundo para essa criança, ocupando assim um papel de expansão que só ele pode exercer, afinal é DONO DO FALO.
No mito da caverna de Platão, os prisioneiros estão acorrentados no interior da caverna, voltados para as sombras projetadas na parede. Essas sombras são ilusões, projeções da realidade exterior, uma realidade intermediada, não acessada diretamente.
Analogicamente, o bebê e a mãe vivem, nos primeiros tempos, uma relação simbiótica. A mãe é o “mundo inteiro” do bebê; tudo o que ele percebe é mediado pelo desejo materno. Ela acaba sendo a primeira figura de amor, mas não pode caminhar em direção à luz. Pois ela, a mãe, não tem o “falo” que a permite olhar e almejar estar em outro lugar fora da caverna (ao menos não naquele momento).
No mito, quando um dos prisioneiros é libertado e sai da caverna, ele sofre, recusa a luz e depois a aceita, como um processo de ruptura com o antigo mundo e reconstrução de sentido, sendo fundado como sujeito. Essa travessia é análoga à intervenção da função paterna, que rompe o laço fusional mãe-filho (mesmo ausente, esse pai pode ser associado a esse salvador, pois ele está fora e não dentro).
É claro que essa “mãe-caverna”, em algum momento, também consegue romper esse estado simbiótico com suas próprias pernas, mas confessamos que às custas de ser submetida quando faz esse movimento a um dispositivo denominado culpa materna - grande ferramenta de controle. Não há incentivos assegurados para que faça essa movimentação amparada e com “mais figuras de cuidado” sendo implicadas e responsabilizadas nesse processo.
E é aí que fico pensando: como essa relação simbiótica de “mãe e filho”/”mulher e criança” seria completamente revolucionada se tivéssemos na cultura uma distribuição mais igualitária ou até mesmo coletiva do cuidado na primeira infância?
Pleiteando assim não o fim do complexo de Édipo. Até porque, como vimos, alguns autores defendem que mesmo em estruturas de cuidado em rede e coletivas, ou mesmo matriarcais, sempre teremos uma “escolha” em maior grau de um primeiro e um segundo outro por essa criança.
Mas, certamente, reflito eu, ao colocar a distribuição do cuidado como foco da reflexão do Édipo, há uma defesa de caminho para que “O rebaixamento feminino” e essa “Humilhação associada ao HUB Mãe” seja solucionada pela mesma cultura que a criou.
Gosto de pensar, portanto, que quando minha filha manifesta o desejo de casar com o pai, ela está pedindo para conhecer o mundo, o pai-mundo.
E quando ela abre espaço para questionar “o que vai acontecer comigo, a mãe-caverna”, ela também me convida para, de alguma forma, dar um jeito de conhecê-lo e desbravá-lo também.
Ps final: Finalizo com uma experiência sensorial e multimídia para - feito música - escutar o que é uma mesma história contada por um “pai/mundo” e por uma “mãe/caverna”.
É só apertar o play e ouvir Meu Guri.
Aqui, entoado por Chico Buarque, o pai mundo
Já aqui, sentido por Elza Soares, a mãe caverna
Que viagem né Duplers?
Obrigada por chegarem até aqui

